Sua obra se espalha por mais de 40 livros publicados. O mais
festejado pela crítica talvez seja o Poema
Sujo, longo poema escrito em 1976, numa linguagem que às vezes comove pelo
lirismo, às vezes choca pela crueza quase obscena – mas é sempre emocionante e
reveladora pela força de sua humanidade. Um pequeno trecho:
(...) Mas que
é o corpo? /Meu corpo feito de carne e de osso/Esse osso que não
vejo/maxilares, costelas/flexível armação que me sustenta no espaço/que não me
deixa desabar como um saco/vazio/que guarda as vísceras todas/funcionando/como
retortas e tubos/fazendo o sangue que faz a carne e o pensamento/e as palavras/
e as mentiras/e os carinhos mais doces mais sacanas/mais sentidos/para explodir
uma galáxia de leite/no centro de tuas coxas no fundo/de tua noite ávida
(...)
Nascido em São Luiz do Maranhão em 10/09/1930, José Ribamar
Ferreira (o Gullar foi adotado aos 18
anos e é forma aportuguesada de Goulart,
sobrenome materno) é um mestre das palavras. Usa-as para falar da beleza e das
dores humanas, para criticar as injustiças da vida social, para discutir a
função da arte, para entreter, fazer rir e fazer pensar. Como neste poema:
Não há vagas
O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
- porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira
Seus trabalhos mais populares, mas nem sempre associados a seu nome, são episódios do seriado Carga Pesada e as minisséries Araponga e As noivas de Copacabana, que escreveu para a TV Globo em parceria com o amigo Dias Gomes e outros autores. Foi também em parceria que escreveu peças teatrais de sucesso, entre elas Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, com Oduvaldo Viana Filho, e Dr. Getúlio, sua vida e sua glória, com Dias Gomes.
Aos 84 anos, continua a ser um trabalhador incansável. Acaba de fazer uma nova tradução, modernizada e mais coloquial, do livro “O pequeno príncipe”, do francês Saint-Exupéry; faz desenhos, pinturas e colagens só vistos por quem visita seu apartamento em Copacabana; publica todos os domingos uma coluna no jornal Folha de S.Paulo, onde fala de política, poesia, artes e miudezas do cotidiano; viaja pelo Brasil fazendo palestras e recebendo homenagens; e ainda arranja tempo para cuidar de sua gata de estimação, a Gatinha, musa inspiradora de uma crônica recente, na qual confessa que queria ser um gato, porque “o gato não sabe que é mortal; logo, é imortal”.
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